domingo, 17 de março de 2013

Queimada Viva, parte II

Capítulo "O Fogo"

(...)
"De súbito, ouço bater a porta. Ele aparece e avança.
Revejo essas imagens vinte e cinco anos depois como se o tempo se tivesse imobilizado. São as últimas imagens da minha existência anterior, lá longe, na minha aldeia da Cisjordânia. Desfilam ao retardador, como nos filmes que passam na televisão. Surgem incessantemente diante dos meus olhos. Queria apagá-las mal surge a primeira, mas já não consigo. parar o filme. Quando a porta bate, é demasiado tarde para o interromper, tenho necessidade de rever essas imagens porque continuo sempre a tentar compreender o que não compreendi: como é que ele fez? Eu teria sido capaz de lhe escapar se tivesse compreendido?
Avança na minha direcção. É o meu cunhado Hussein com roupa de trabalho, umas calças velhas e uma t-shirt. Pára em frente de mim e diz:
- Olá, como vai isso? - com um sorriso. Tem na boca uma erva, que vai mascando sem deixar de sair.  - Vou-me ocupar de ti.
Aquele sorriso... diz que vai ocupar-se de mim, e eu não estava à espera daquilo. Também esboço um sorriso, de agradecimento, não me atrevendo a balbuciar uma palavra.
- Estás com uma grande barriga, hein?
Baixo a cabeça, sito vergonha de olhar para ele. Baixo ainda mais a cabeça e toco os joelhos com a testa.
- Tens aí uma mancha. Puseste hena de prepósito?
- Não, pus hena nos cabelos, não foi de propósito.
- Fizeste de prepósito para a esconderes.
Olho para a roupa que me preparava para enxaguar, entre as minhas mãos trémulas.
É a última imagem fixa e lúcida. Aquela roupa e as minhas mãos a tremer. As últimas palavras que o ouvi dizer foram: « Fizeste de prepósito para esconderes.»
Ele não disse mais nada, eu mantive a cabeça baixa com vergonha, levemente aliviada por não me fazer mais perguntas.
De repente senti uma coisa fria escorrer-me pela cabeça. E de súbito o fogo envolveu-me. Percebi o fogo, e o filme acelera-se, as imagens passam muito depressa. Começo a correr descalça pelo quintal, bato com as mãos nos cabelos, grito e sinto a roupa a flutuar atrás de mim. A minha roupa também estava a arder?
Sinto o cheiro a petróleo e corro, mas a arte de baixo do vestido impede-me de dar grandes passadas. O terror guia-me, institivamente, para longe do pátio. Corro para o quintal porque não há outra saída. Mas não me lembro de quase nada depois. Sei que estou a arder e corro e grito de dor. Como é que consegui fugir? Ele correu atrás de mim? Estava à espera que caísse para me ver a arder?
Devo ter forçosamente trepado para cima do muro baixo do quintal para me encontrar, depois, ou no quintal dos vizinhos ou na rua. Havia mulheres, duas creio, por isso era com certeza na rua, e elas batiam-me com qualquer coisa, suponho que com os lenços.
Arrastaram-me até à fonte da aldeia e a água derramou-se num jacto sobre mim enquanto eu berrava de pavor. Ouço essas mulheres a gritar, mas não vejo mais nada. Tenho a cabeça descaída sobre o peito, sinto escorrer a água fria, que nunca mais pára e grito de dor porque a água fria queima-me. Estou enroscada, sinto o cheiro a carne queimada, a fumo. Devo ter desmaiado. Já quase não consigo ver. Há ainda algumas imagens vagas, sons, como se estivesse na camioneta do meu pai. Mas não é o meu pai. Ouço vozes de mulheres que choram. «A desgraçada», «a desgraçada»... Consolam-me. Estou deitada num carro. Sinto os solavancos da estrada. Lembro-me de gemer.
E, depois, mais anda. Mas, mais tarde, outra vez o ruído do carro e as vozes das mulheres. Cotinuo a arder como se o fogo ainda me envolvesse. Não consigo levantar a cabeça, não consigo mexer o corpo nem os braços, sinto-me a arder, sempre a arder... sinto o cheiro nauseabundo da gasolina, não compreendo aquele ruido do motor, as lamentações das mulheres, não sei para onde me levam. Quando entreabro os olhos, só consigo vislumbrar um bocadinho do meu vestido ou da minha pele. É negro e cheira mal. Continuo a arder, e no entanto, o fogo já não me envolve. Mas, apesar disso, continuo a arder. Na minha mente, continuo a correr envolta em chamas.
Vou morrer. Não impprta. Talvez já esteja morta. Finalmente acabou-se."

O capítulo central de toda esta história, e na minha opinião o relato mais marcante que já li... Ainda não acabei de ler o livro, mas cada vez ganho mais ódio a estas pessoas que matam só para "ficar bem"!



2 comentários:

Unknown disse...

Nunca li esse livro mas já me deu imensa curiosidade ! (:

Us disse...

já tentei ler esse livro mas se calhar não tinha maturidade suficiente para conseguir acabar, ou então sou só muito sensivel á realidade desses países :s
beijinho*

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