terça-feira, 8 de março de 2016

A verdade

Nem sei bem como começar este post, sinceramente vai ser dos que mais me vai custar escrever. Sinto-me, de certa forma, na obrigação de partilhar, verdadeiramente tudo aquilo que aconteceu com o Francisco. Após todos aqueles textos enquanto grávida, todos aqueles textos pós-grávida, todas as minhas partilhas de tristeza, a dor, a imensidão de dor que se apoderou de mim, sinto que tenho de partilhar agora a verdade, talvez o texto mais transparente que irei fazer...

Há dias que gosto de recordar o dia 13 de Julho, apesar de tudo, não deixa de ser o dia em que tive a melhor experiência da minha vida. Penso várias vezes como pode ser possível o dia mais feliz da nossa vida ser também, o pior. Penso como é possível, numa fracção de segundos estarmos felizes e tristes, como é possível a vida mudar com uma simples frase? Lembro-me bem que horas eram, cinco da manhã, e eu sem conseguir dormir, aquelas contracções horríveis que não me deixavam em paz, e eu sempre na dúvida se estava na hora ou não. Lembro-me bem de estar a trocar mensagens com a Bárbara, e ela só dizer: "amor, vai para o hospital!" Tinha medo, claro que tinha medo, apesar de andar nove meses ansiosa por aquele dia, eu não tinha o Fábio perto, quem me iria segurar na mão? Quem me iria beijar a testa quando finalmente tivesse de parar de fazer força? Quem iria cortar o cordão umbilical? Eu não queria que ele nascesse já, não queria assim desta forma... Mas nós não mandamos nisto pois não mães?
A viagem até ao hospital foi demorada, bem, na minha cabeça sim, tudo o que eu queria era chegar lá o mais rápido possível, e o tempo não passava. Não tinha conseguido mandar mensagem ao Fábio, nem ligar, tinha a sensação que teria de esperar pelo momento certo, até porque tudo aquilo poderia ser, na verdade, falso alarme. 
A arrogância começou na chegada, quando, deitada na maca uma mera enfermeira (sem querer descriminar quaisquer enfermeiros)me diz: "não és nenhuma inválida para estares aí deitada, põe-te a pé!" Bem, na minha paz de alma que sou, fiz o que ela mandou e deitei na marquesa do consultório médico da sala de partos. Como habitual, fizeram me as perguntas de rotina e logo de seguida a ecografia... O silêncio, é o único som que ainda hoje paira na minha cabeça... Faltavam os batimentos cardíacos, faltava os pontapés, faltava uma vida ali... A insensibilidade de dizer: "O seu filho está morto!" ainda me mói, ainda dói e ainda ecoa aqui dentro... A insensibilidade no olhar, nas perguntas e na falta de apoio psicológico ainda me fazem pensar como MULHERES, mães ou não conseguem ter essa frieza toda!! Pode ter sido a única forma de dar uma notícia, pode ser a forma como elas utilizam para o fazer, até podem estar habituadas a dar este tipo de notícias e aquela vida ser mais uma que não lhes faz a mínima diferença. Mas era o meu filho, é o meu filho, é uma vida que apesar de terminada estava dentro de mim, era o que eu mais queria e o que eu mais amava, era a única razão que eu encontrei para viver. Era a minha vida. E ela tinha acabado ali, naquela marquesa, naquele consultório, naquele corredor de partos, naquele sitio onde milhares de felicidades passaram, e bebés que choravam pela primeira vez... Metade de mim estava com o Francisco no céu. E apesar das restantes quatro horas e meia eu não conseguir ter quaisquer pensamentos, eu sabia que o momento de me separarem dele estava a chegar, e nada eu poderia fazer para o impedir. E o Fábio continuava sem saber nada... 
"Puxa Carla, já vejo a cabecinha!" "Tens tempo querida, força!" Eu não queria ter tempo, eu queria que ele saísse e ouvisse um choro, queria acordar e saber que tudo aquilo era um pesadelo. Foram os vinte e oito minutos mais longos da minha vida, os mais felizes e os que mais me doeram. Irónico não é? Como é possível nesta vida termos um~misto de sentimentos ao mesmo tempo?
Não o vi. Não peguei nele, não ouvi chorar. Não sei de nada!!! E sabem que no fundo isto é o que mais me dói hoje? Não quero que me venham dizer que foi o melhor, que se o visse era pior, prefiro que não me digam nada, naquele dia sim, foi o melhor, mas hoje, ao longo do tempo não!!! Dava tudo para poder voltar atrás, e apesar de saber que não poderia mudar o destino daquela fatalidade, ao menos pegaria nele, abraçava-o e beijava-o! Faria tudo aquilo que uma mãe tem o direito de fazer... Culpo-me por isto, por não ter sido adulta o suficiente para ama-lo no primeiro instante. Acho que nunca disse isto a ninguém, mas vivo à vinte meses com a certeza que rejeitei o meu filho no dia que ele nasceu!
Dói imaginar os restantes momentos, dói estar aqui sequer a lembrar-me da dor, dói, ainda hoje olhar à minha volta e sentir-me vazia, dói-me toda ausência, dói-me não ter tido a oportunidade de ser feliz... Às vezes olho á minha volta, e vejo grávidas, e bebés, imagino como se seria se tudo fosse diferente e não consigo. A minha mente tornou-se de tal forma vazia que se tornou impossível sequer, pensar em algo que não houve a mínima hipótese de ter acontecido.
Esperei quinze meses para saber o porquê disto tudo ter acontecido. Passei por coisas que não desejo a ninguém ter passado, o facto de perder um bebé por si só, parece não ter sido o suficiente... "O que fazemos ao corpo do seu filho?", continuo a achar que estas perguntas vezes sem conta foram-me matando mais um bocadinho. Como não me tornar numa mulher mais fria, vazia e sem propósitos? A trombose não ajudou, e todo aquele percurso entre hospitais, internamentos, medicamentos, desgastou-me por completo.
Fui chamada, poucos dias antes do dia quinze de Outubro, ironia do destino, na semana em que tive realmente autorização para poder voltar a engravidar! Fiquei receosa, quinze meses à espera de noticias é realmente muito tempo. Houveram alturas em que perdi a esperança sequer de saber o porquê... Tantas foram as vezes que achava que o mundo estava contra mim e queria apagar a existência do Francisco. Tanta coisa me passou pela cabeça... Mas chegou o dia que tanto esperava, estava tão ansiosa, nervosa, só conseguia pensar que não queria que a noticia me destruísse. Passei dias a achar que a culpa iria ser minha, que o erro seria meu, pensei que iria ter de culpar alguém pelo que aconteceu, pensei em mil e uma coisas, mas tinha de me mentalizar que após tudo o que me aconteceu após a morte do Francisco era apenas um dos indícios que algo não estava bem comigo.
Quando cheguei ao 3º piso, e à porta da sala de partos bloqueei. Tive um flasback, na minha cabeça passavam imagens, frases, lágrimas, memórias, vozes, tudo o que eu não precisava de sentir naquele momento. Senti-me a desmoronar, a desfalecer, e ainda me passou pela cabeça não querer saber de nada e sair dali, a correr!!! Estive duas horas à espera, e ainda vi partos de urgência, ouvi choros de bebés acabados de nascer, pais felizes, médicos contentes, mães maravilhadas, e eu! Sabem quando estão fechados numa bolha tão grande, mas tão grande prestes a rebentar? Eu sentia-me assim. Mas fui forte, aguentei, segurei, e esperei pelas palavras que me trariam a verdade...
Melhor do que eu explicar tudo por palavras minhas, só mesmo partilhando com vocês, no fundo, aquilo que se tornou num pedaço de mim.




Ao meu filho,
serás sempre o eterno amor da minha vida. Levaste contigo todos os meus sonhos, todos os meus projectos de vida, todo o amor que guardei para te dar. Um bocadinho de mim foi contigo. Eu e o papá continuamos dia após dia, a acordar e a ter-te como nosso primeiro pensamento. Às vezes tenho medo que te sintas esquecido, eu sei que muitas das vezes pareço obcecada por falar de ti a todo o momento, mas eu não quero que ninguém te esqueça, eu quero que toda a gente saiba que apesar de teres partido cedo demais, exististe, e eu sou tua mãe. Isso ninguém me pode tirar. 
Sabes que a prima continua a dizer que te vê nas estrelas? Quem sabe que não seja verdade, e na realidade estejas aqui bem presente connosco. Eu quero acreditar que sim, quero acreditar que de certa forma continuas aqui dentro de mim, e a fazer-me sentir novamente viva. "Madinha, o kikinho tá ali naquela estrela!" 
Por mais que eu queria continuar a proferir palavras para ti não consigo meu amor, dói tanto. Quem disse que o tempo me iria ajudar não sabe o que é perder um filho... Dói demais, sinto um aperto no coração só de estar aqui a escrever isto...
Amo-te demais, eu e o papá, para sempre.
Eterno amor da minha vida.
  

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